DOE 23/08/2022 - Diário Oficial do Estado do Ceará
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DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO | SÉRIE 3 | ANO XIV Nº171 | FORTALEZA, 23 DE AGOSTO DE 2022
do imputado. Familiares e amigos da vítima relataram sobre as brigas do casal em público e as diversas ameaças de morte e xingamentos sofridas pela viti-
mada, especialmente porque o indigitado, sendo policial militar, portava ostensivamente arma de fogo, constrangendo e intimidando a companheira. No dia
do evento criminoso o casal se dirigiu ao restaurante Divina Picanha Grill, na Avenida Silas Munguba, no bairro Serrinha, nesta cidade, e, após a ingestão
de bebida alcoólica, iniciou numa discussão acalorada marcada por puxões de braço, sacolejos, xingamentos e ameaças de morte do réu contra a vítima. A
mulher, apavorada, se dirigiu ao banheiro feminino e telefonou para a amiga Marileide Nascimento pedindo socorro, porque assegurava que o indiciado
estava louco e queria matá-la. O denunciado invadiu o banheiro, arrancou a companheira e a obrigou a entrar no veículo de sua propriedade, qual seja, um
toyota ethios vermelho, de Placas PMF4685. No interior do veículo as agressões continuaram, a vítima saiu pilotando o carro e, poucos metros depois,
defronte ao supermercado Cometa, na Avenida Silas Munguba, o acusado efetuou vários disparos de arma de fogo na cabeça da vitimada que faleceu na via
pública, dentro do carro no banco do motorista. Quando da chegada da equipe policial ao local, o denunciado saiu de dentro do veículo e se identificou como
policial militar e pediu que prestassem socorro a vítima, a arma utilizada fora apreendida e lavrado o respectivo auto de prisão em flagrante. […]” (sic);
CONSIDERANDO que a Comissão Processante destinou os Ofícios n.º 4072/2021 (fls. 111), n.º 4040/2021 (fls. 112) e n.º 4042/2021 (fls. 113), datados de
10/05/2021, respectivamente, ao Coordenador da CIOPS, ao gerente da Churrascaria Divina Picanha Grill e ao gerente do Supermercado Cometa, solicitando
cópias dos registros de imagens do dia 08/10/2020, no horário compreendido entre as 14h00min e 16h00min, de câmeras de monitoramento interno e de
segurança instaladas na via e nos estabelecimentos comerciais citados, para fins de instrução probatória, cujas respostas exaradas, respectivamente, por meio
do Ofício 1427/2021 – CIOPS/SSPDS (fls. 121), de manifestação da representante legal do Supermercado Cometa EIRELI (fls. 124/125) foram negativas
no sentido de não haverem mais tais registros em razão do lapso temporal entre a data do fato e a data da solicitação, visto que as imagens somente ficariam
armazenadas por um curto espaço de tempo, sendo substituídas por outras periodicamente; CONSIDERANDO que não foi possível a obtenção de imagens
do local do ocorrido, porquanto o dispositivo de armazenamento de arquivos (pen drive) entregue pelo gerente do Restaurante Divina Picanha (Antônio
Reinaldo de Oliveira) em sede Auto de Prisão em Flagrante Delito na Delegacia da Mulher não continha nenhum arquivo, conforme mencionado pela
Comissão Processante; CONSIDERANDO que a CIOPS encaminhou à Comissão Processante a C.I. nº 181/2021/NUVID/CEOPI/CIOPS informando não
ter nenhum registro em sua base de dados de imagens do local (fls. 122); CONSIDERANDO que os atos praticados pelo militar estadual CB PM Bonfim,
dentre outras condutas, convergem para transgressões disciplinares de natureza grave, de sorte que o manancial probatório acostado aos autos confere
convencimento de que tal falta funcional ocorreu conforme narrada, comprovando ser ele de fato o autor do delito; CONSIDERANDO que, de modo a exaurir
a cognição e justificar a punição expulsória em face do CB PM Manoel Bonfim dos Santos Silva, pertinente pontuar que o poder disciplinar busca, como
finalidade fundamental, velar pela regularidade do serviço público, aplicando, para tanto, medidas sancionatórias aptas a atingir tal desiderato, respeitando-se
sempre o princípio da proporcionalidade e seus corolários (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); CONSIDERANDO, oportuno
asseverar, que a versão de que a vítima tenha supostamente atentado contra a vida do acusado não encontra plausibilidade alguma, tampouco substrato nas
provas, haja vista não haver nenhuma constatação nos presentes autos que pudesse corroborar, ainda que minimamente, com essa alegação; CONSIDERANDO
que em última análise, ressalte-se que em relação às pretensões arguidas pela defesa após findada a instrução processual, com os autos conclusos à Autoridade
Controladora, frise-se que já foram devidamente analisadas e confrontadas pela Trinca Processante ao longo da instrução, notadamente no bojo dos diversos
Despachos exarados pela Comissão; CONSIDERANDO, assim, que o vasto acervo probatório granjeado aos autos no curso da instrução processual revelou
que o aconselhado foi o autor das condutas transgressivas que lhe foram imputadas na inicial, restando fartamente configurada a materialidade de prática
subsumida ao delito de homicídio qualificado (feminicídio), na modalidade consumada, positivado no Art. 121, caput, c/c § 2.º, incisos IV e VI, § 2.º-A,
inciso I, do Código Penal Brasileiro, cuja norma material comina pena em abstrato de reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. Assim sendo, observados os
limites de incidência do princípio da independência das instâncias, a administração pública não pode se quedar inerte diante de tão grave constatação, devendo,
nestas hipóteses, impor ao agente considerado culpado sanção proporcional à severidade e repercussão social do ato, nos termos da norma de regência disci-
plinar aplicável; CONSIDERANDO que, in casu, a conduta do aconselhado CB PM Manoel Bonfim dos Santos Silva demonstrou obtuso desprezo à vida
humana, conduta esta a ser veementemente repreendida e extirpada do seio das corporações policiais estaduais, traduzindo qualquer conivência com tal
atitude uma verdadeira blindagem inexpugnável e desrespeito ao direito fundamental à vida, equivalente a uma autofagia institucional, não apenas por mera
preocupação com a preservação da imagem institucional, mas por imposição constitucional e convencional, mormente porque o Brasil é signatário de tratados
e outros instrumentos normativos internacionais por meio dos quais se obrigou perante a comunidade internacional a prevenir, punir e erradicar todo tipo de
violência contra a mulher, inclusive obrigando-se a incluir em sua legislação pátria normas específicas para o enfrentamento dessa recorrente problemática,
movimento do qual adveio, dentre outras modificações, a Lei n.º 11.340/06, a qual trata de maneira específica a violência doméstica e familiar contra as
mulheres, denominada “Lei Maria da Penha”, que no mês de agosto de 2022 completa 16 anos de vigência, mostrando-se como “[…] instrumento legal eficaz
a favor das vítimas” (MELO, Emanoela Campelo de., bem como a Lei do Feminicídio (Lei n.º 13.104/2015), que trouxe o conceito de feminicídio, servindo
para trazer à tona toda a invisibilidade do tema, além de servir como um elemento importante para diminuir a impunidade sobre os casos a partir do desen-
volvimento de políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Art. 3.º, § 1.º, Lei n.º 11.340/2003). Demais disso, outras importantes
inserções normativas advieram posteriormente, tais quais as Leis nº 12.737/2012 (“Lei Carolina Dieckmann”), nº 12.845/2013 (“Lei do Minuto Seguinte”)
e nº 12.650/2015 (“Lei Joanna Maranhão”); CONSIDERANDO que tal preocupação não passou ao largo no Estado do Ceará, que em inovação legislativa
recente alterou a redação do Art. 199 da Lei nº 9826/74 (Estatuto dos Servidores Estaduais) prevendo a demissão obrigatória do funcionário público em caso
de violência doméstica contra a mulher. Eis o novel excerto normativo na íntegra: “a demissão será aplicada em caso de crime comum praticado em detrimento
da dignidade da função ou do cargo público, incluídos os crimes de violência doméstica com a mulher”. No caso concreto, a ação do militar em evidência
deve ser encarada como grave e aviltante ofensa à dignidade da pessoa humana, consubstanciada na atitude de menosprezo e discriminação à condição da
vítima enquanto mulher, a qual, infelizmente, teve sua vida ceifada de forma violenta e repentina por parte de quem, por ser agente de segurança pública,
detinha o dever (múnus público), não apenas enquanto seu companheiro, de preservar-lhe a integridade física e a vida, conduta esta agravada pelo fato do
acusado ter-se utilizado para a prática delituosa de armamento institucional pertencente à Administração Pública posto sob sua responsabilidade. A predis-
posição agressiva e o descontrole emocional que o acusado nutria em relação à vítima, combinado com a intolerância e descaso com a vida humana, estão
devidamente comprovados nos autos, cujo somatório foi a mola propulsora do crime perpetrado no interior do veículo facilitado pelo fato dos vidros serem
escuros, o que afastou a possibilidade de fracasso do empreendimento transgressivo. In casu, conforme se depreende dos autos, em especial dos depoimentos
de amigos da vítima, há indicativos de comportamento hostil e até mesmo violento por parte do aconselhado em relação à Sra. Ana Rita que, em diversas
situações de contrariedade a seus posicionamentos e ciúmes, teria sido agressivo, ameaçando-a, inclusive, com uma arma de fogo. De mais a mais, a despeito
das diversas pessoas que presenciaram a discussão e o comportamento agressivo do acusado para com a vítima no restaurante, momentos antes do cometi-
mento do crime, conforme relatado em sede policial, noticiando terem percebido que o aconselhado estaria armado, observa-se que tal fator não o inibiu para
a consecução da prática delitiva em desfavor da vítima, demonstrando a ousadia e o menosprezo na empreitada criminosa, antes, durante e após a consumação
do homicídio duplamente qualificado. Ademais, os relatos dos funcionários do Restaurante Divina Picanha indicaram o comportamento agressivo do acusado,
aduzindo terem percebido uma discussão e que, em dado momento, o agressor teria dado um murro na mesa. Um dos funcionários, ouvido em sede inquisi-
torial, declarou ter alertado o segurança do local quando viu o homem segurar e puxar o braço da mulher, instante em que o gerente teria acionado uma viatura
policial, além de ter ouvido trechos da discussão e de ter visto o acusado sacolejar a mulher, momento em que a vítima teria se dirigido ao banheiro do
estabelecimento. Disse ainda ter avistado quando o acusado efetuou um telefonema, mudou a arma de lugar na cintura - momento em que percebeu que ele
portava uma arma de fogo - e invadiu o banheiro feminino, de onde uma outra moça que lá estava teria saído correndo e gritando: “chega, chega ele vai matar
ela, ele está armado” (sic). Por último, o funcionário relatou que, após isso, o acusado teria empurrado a vítima em direção ao estacionamento, saindo ambos
no veículo da Sra. Ana Rita; CONSIDERANDO que, quanto ao modo de execução do delito e à dinâmica do crime, existe vertente probatória nos autos a
amparar a conclusão de que a vítima se encontrava com sua capacidade de resistência diminuída por estar na condução do veículo, depreendendo-se, portanto,
que no momento do fato delituoso, sua atenção estava invariavelmente voltada para o trânsito, momento em que teria sido surpreendida por disparos efetuados
a “queima roupa” contra si, evidenciando violência desnecessária e imoderada; CONSIDERANDO que, nessa linha, segundo informação estatística publicada
pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp/SSPDS), naquele ano de 2020 cerca de 27 (vinte e sete) mulheres teriam sido
vítimas de feminicídio no Estado do Ceará, porém, poucos casos ganharam tamanha repercussão midiática quanto o caso em tela em razão da maneira brutal
com que ocorreu o fatídico homicídio aliada à qualidade da profissão exercida pelo aconselhado, causando revolta e desassossego social. O crime em foco
chocou não só a cidade de Fortaleza, mas também todo o Estado do Ceará. A brutalidade e a covardia da ação transgressiva do aconselhado atraíram a
cobertura por redes televisivas de âmbito local e nacional, demonstrando que, além do elevado prejuízo psicológico causado à família da vítima em decor-
rência da envergadura da ação delitiva, transcendeu o resultado típico, exorbitando o prejuízo emocional ínsito ao momento da perda de um ente querido.
Alcançou a expectativa de pacificação das emoções dos familiares, que estão e, indefinidamente, estarão – sujeitos à exposição da dor e do trauma da morte
de Ana Rita Tabosa, visto que pelo interesse público que o caso assumiu em virtude da brutalidade da conduta delitiva, faz a família, inevitavelmente, ter
que reviver, frequentemente e com ampla exposição em vários meios de comunicação social, o sofrimento da perda de ente familiar. Vê-se, pois, que, no
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