DOE 23/08/2022 - Diário Oficial do Estado do Ceará
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DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO | SÉRIE 3 | ANO XIV Nº171 | FORTALEZA, 23 DE AGOSTO DE 2022
caso concreto, as consequências das transgressões foram mais acentuadas do que normalmente se tem em situações dessa espécie. Dessa forma, justifica-se
ainda mais a aplicação da penalidade administrativa em seu máximo grau, necessária e suficiente à reprovação e prevenção das transgressões, conduta agra-
vada pela presença de circunstâncias disciplinares desfavoráveis (gravidade e os motivos determinantes do fato, extensão dos danos causados, a personalidade
e os antecedentes do agente, a intensidade do dolo ou o grau da culpa) e pela prática simultânea ou conexão de duas ou mais transgressões (Cf. Art. 33 c/c
Art. 37 e Art. 35, inc. II, da Lei n.º 13.407/2003), de consequências irreversíveis, visto que a vida ceifada não se poderá restaurar, bem como o fato resultou
em perda de um ente querido pela família, privada em definitivo de seu convívio; CONSIDERANDO que, quanto ao comportamento da vítima, o fato de
Ana Rita ter tido uma discussão com o aconselhado não demonstra ter concorrido para a prática delitiva cometida pelo imputado, sob pena de se responsa-
bilizar indevidamente a vítima pelo delito de natureza hedionda cometido pelo epigrafado; CONSIDERANDO que a ocorrência do feminicídio, em regra,
não resulta de um acontecimento isolado, muito menos repentino e inesperado, fruto de um lapso fortuito de emoção, mas o ponto culminante de um cenário
contínuo de violências decorrentes de raízes misóginas arraigadas historicamente no cotidiano das mulheres, decorrente, não raro, de um processo progressivo
de atos de violência, em princípio de grau reduzido (xingamentos, ameaças, dependência financeira, etc.), inseridos em um contexto silencioso, quase sempre
restrito ao inviolável ambiente das relações domésticas e infrafamiliares, longe dos olhos da sociedade e das autoridades, no qual a mulher é subjugada,
suprimida nos seus mais básicos direitos e discriminada como um “ser inferior” dotado de obrigações voltadas unicamente à saciedade do gênero masculino,
reprimidas, normalmente, pelo sentimento de posse perpetuado por parceiros ou ex-parceiros, de modo que a violação de direitos não se reduz à esfera pública,
mas também alcança o domínio privado. Por vezes, como na hipótese dos autos, tais comportamentos descambam tragicamente em atos extremos, seja
mediante sofrimento psicológico ou sexual, onde a mulher é objetificada e tratada como mero item sexual, seja na agressão física, mutilação ou vitimação
fatal da mulher. Nessa vertente, por ser uma expressão letal da disparidade de gênero e das inúmeras violências que atingem as mulheres em geral, por conta
de uma sociedade extremamente marcada por uma desigualdade, o feminicídio, assim como outras formas de violência contra a mulher, tem ganhado amplo
espaço no centro do debate. Assim, o feminicídio é, antes de tudo, um crime de ódio, o ódio ao feminino; CONSIDERANDO que a culpabilidade restou
evidenciada no caso dos autos, autorizando um maior juízo de reprovabilidade da conduta face a intensidade do dolo, acentuada da elaboração mental do
delito extraída da intensidade da vontade transgressiva e da extrema frieza emocional do aconselhado na consecução do delito visto como um todo, o que se
nota a partir das ações desde o início da execução do crime até o comportamento externado após a causação da morte. O acusado, após desferir os disparos
contra a vítima, que era a sua atual companheira (não um terceiro qualquer), permaneceu inerte no interior do veículo com a ofendida, possivelmente já sem
qualquer manifestação vital, até a chegada dos policiais militares, não se tendo notícia nos autos que tenha acionado socorro médico imediato ou mesmo
adotado meios para impedir o resultado morte, ou quiçá minimizar a gravidade do ato perpetrado. Tais fatos denotam, portanto, a intensidade exacerbada do
dolo da conduta criminosa visada, qual seja feminicídio envolto no contexto de violência doméstica e familiar (Art. 121, § 2º-A, IV e VI, CPB) baseado no
critério de gênero, amoldável à definição descrita no Art. 5.º, inc. III, da Lei n.º 11.340/2006 (“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência domés-
tica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial: III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”),
na medida em que demonstrado que a violência teve como fator determinante o gênero feminino da vítima. O acusado agiu com consciência em busca do
resultado transgressivo, com frieza, possuindo, na ocasião, consoante atestado clinicamente, pleno conhecimento da ilicitude de sua conduta, sendo-lhe
exigível comportamento diverso daquele adotado, o que torna necessário a censura à conduta do aconselhado; CONSIDERANDO ter restado plenamente
comprovado que o aconselhado de fato praticou as condutas descritas na exordial acusatória, fato inescusável, afrontando a dignidade do cargo, demonstrando
incompatibilidade em permanecer nos quadros da Polícia Militar, posto que de seus integrantes esperam-se homens e mulheres disciplinados, com elevado
senso de dever e firme propósito de cumprir os valores e deveres militares estaduais, visando bem servir à sociedade, objetivos que não foram observados
na conduta do policial em epígrafe. Nesse sentido, analisando-se detidamente os autos e se verificando presentes a materialidade e autoria transgressiva,
estreme de dúvidas, a punição disciplinar capital é a medida a ser imposta ao CB PM Bonfim, posto que os elementos colhidos durante a instrução reuniram
robusto acervo probatório no sentido da comprovação da elevada culpabilidade do acusado epigrafado ante as condutas dispostas no raio apuratório. Depre-
ende-se do caderno processual que o acusado, aproveitando-se da facilidade proporcionada pelo acesso a uma arma de fogo e diante da impossibilidade de
defesa por parte da vítima, que não esperava tal desfecho, sendo pega de surpresa já que, conforme exame de local de crime, no momento dos fatos conduzia
o veículo em que ambos estavam, efetuou disparos a curta distância na cabeça da companheira, causa eficiente de seu óbito. Apontou o laudo pericial que o
vidro da porta do motorista foi encontrado sob o veículo no qual se observaram 03 (três) perfurações, as quais apresentavam características de dano produzido
por instrumento perfurocontundente, no caso projétil arremessado por arma de fogo, sendo uma delas compatível com o dano identificado no terço médio
do setor lateral esquerdo do automóvel, com orientação de dentro para fora na porta do motorista; CONSIDERANDO que avultou o elevado grau de censu-
rabilidade do ato praticado, afastado do normal, visto que os disparos efetuados na vítima caracterizaram verdadeira execução praticada em via pública, ainda
que no interior de um veículo, por motivo irrelevante e banal, restando ainda notório o risco iminente e concreto de que algum dos disparos pudesse vir a
atingir pessoas alheias, demonstrando, com isso, o total desprezo do agente pelo bem da vida e pelo ordenamento jurídico pátrio, pois o Laudo Pericial de
Local de Crime Contra a Vida – Homicídio nº 2020.0115776 (fls. 233-303-v), emitido pela PEFOCE, apontou que foram encontrados no local 04 (quatro)
estojos de calibre .40 e 01 (uma) jaqueta de projétil, os quais foram apreendidos pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), e que defronte
há uma loja de perfumaria, onde se observou uma perfuração na porta metálica e, por dentro, uma vidraça estilhaçada, sendo encontrada na parte externa a
jaqueta citada anteriormente. Observou-se ainda outro possível local atingido por um projétil em uma coluna entre as portas da loja, embora não tenha sido
localizado o projétil que a atingiu. Na conclusão do referido laudo, o perito criminal arrematou, após estudar e interpretar os vestígios encontrados, ter ocor-
rido no local uma morte violenta, com emprego de instrumento perfurocontundente, cujas lesões seriam semelhantes àquelas produzidas por projétil arre-
messado por arma de fogo; CONSIDERANDO que a personalidade e a conduta social do aconselhado, face os laudos psiquiátricos contidos nos autos, devem
ser consideradas normais, afastando, assim a incidência do Art. 26 do CP, não estando, portanto, isento de penalização, restando constatado clinicamente
que era, ao tempo da ação transgressiva, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato e se determinar de acordo com esse entendimento; CONSI-
DERANDO que, conforme se depreende dos autos, o comportamento da vítima foi desinfluente à ocorrência do crime; CONSIDERANDO ainda que, em
se tratando de militar graduado com larga experiência profissional, a infração disciplinar resta agravada, denotando sua incapacidade moral para permanecer
nas fileiras da Corporação Militar Estadual, cujos princípios reportam-se imprescindíveis. Assim, ante o conjunto probatório colhido, infere-se que o compor-
tamento do CB PM Bonfim, ao praticar ato tão ignóbil, afetou o decoro policial militar. Portanto, no âmbito administrativo, a conduta apresentada pelo
processado extrapolou os limites da compatibilidade com a função pública, ferindo o brio da classe; CONSIDERANDO que a grave conduta comprovada e
imputada ao aconselhado em evidência, além de trazer evidentes prejuízos à imagem da Polícia Militar do Ceará perante a sociedade cearense, a qual almeja
e espera atitudes dignas dos profissionais voltados à segurança pública, serviu também de péssimo exemplo aos demais integrantes da referida instituição,
dos quais se exigem ações exemplares. Nessa linha, a lealdade, a constância e a honra são valores que não podem ser desrespeitados no dia a dia do policial
militar, sendo ainda seu dever cumprir as Constituições Federal e Estadual, além das leis e demais regramentos, assim como observar a legalidade e a respon-
sabilidade como fundamentos de dignidade pessoal, atuando sempre com probidade, tanto na vida pública como na vida privada. Frise-se, entretanto, que os
valores protegidos pelo Direito Administrativo são distintos daqueles presentes na esfera penal. Os valores protegidos pelo Direito Penal são aqueles mais
relevantes e importantes para o convívio em sociedade, enquanto os valores protegidos na esfera administrativa dizem respeito à atuação do agente público
diante da Instituição a qual integra, conduta esta que deverá ter como objetivo comum a satisfação do interesse público. Desta forma, são considerados
infamantes não necessariamente apenas os delitos mais graves, mas também aqueles que repercutem na dignidade da profissão, atingindo e prejudicando a
imagem dos profissionais que pautam seu comportamento segundo os preceitos éticos e morais. No mesmo sentido, são também tidos como ultrajantes os
crimes que a Constituição considera inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, bem como os crimes equiparados a hediondos – que se revestem de
excepcional gravidade, seja pela natureza do bem jurídico ofendido. Em vigor há sete anos, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) prevê circunstância qualifi-
cadora do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. A lei considera o assassinato que envolve violência doméstica e familiar,
menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Portanto, na perspectiva deontológica de regulação da conduta profissional, os efeitos de um ilícito
podem ser potencializados e caracterizado como infame quando praticado por militar estadual, o qual prestou juramento de bem servir à sociedade, conso-
ante disposição do Art. 49, inc. I, alínea “a”, do Estatuto dos Militares do Estado do Ceará (Lei Estadual nº 13.729/2006): “Ao ingressar na Polícia Militar
do Ceará, prometo regular a minha conduta pelos preceitos da moral, cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado e dedicar-me
inteiramente ao serviço policial militar, à polícia ostensiva, à preservação da ordem pública e à segurança da comunidade, mesmo com o risco da própria
vida”; CONSIDERANDO ser importante ressaltar que, apesar de o aconselhado ter permanecido em silêncio, deve-se entender tal silenciamento como
exercício do nemo tenetur se detegere, ou seja, ninguém é obrigado a produzir provas contra si, de forma a conferir máxima amplitude aos princípios cons-
titucionais da ampla defesa e da presunção do estado de inocência, não podendo ser interpretado em seu prejuízo. Nessa toada, o conjunto probatório,
notadamente os laudos periciais, demostrou a prática transgressiva, esclarecendo a dinâmica e as circunstâncias do ocorrido e atribuindo com solidez a autoria
transgressiva ao acusado, evidenciando sua culpabilidade; CONSIDERANDO ser necessário sublinhar ainda que o valor probatório dos indícios colhidos
durante a fase inquisitorial têm a mesma força que qualquer outra espécie de prova, com a ressalva de não serem analisados de forma isolada, posto que deve
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