DOE 14/06/2023 - Diário Oficial do Estado do Ceará
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DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO | SÉRIE 3 | ANO XV Nº110 | FORTALEZA, 14 DE JUNHO DE 2023
à Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa do IP nº 371-4/2020, no qual se investigou uma tentativa de homicídio contra o aconselhado CB PM Jairo
Alves Lobo, ocorrida no dia 15 de abril de 2020. A cópia do IP nº 371-4/2020 foi juntada no intervalo entre as fls. 257/311; CONSIDERANDO que, também
como diligência complementar, a trinca solicitou, à fl. 247, um levantamento da vida pregressa do falecido João Victor Reinaldo de Sousa junto ao setor de
inteligência deste Órgão Correicional, que elaborou o Relatório Técnico nº 421/2022 (fls. 314/317), no qual se prestou a informação de que a vítima de
homicídio João Victor Reinaldo de Sousa “não consta como infrator em nenhum procedimento policial”. O Relatório Técnico apresentou ainda dados refe-
rentes às pessoas que estavam presente no momento em que João Victor foi alvejado, testemunhas no inquérito que apurou o fato: “Após consultas nos
sistemas Consulta Integrada/SSPDS, SINESP/INFOSEG foi possível verificar que as testemunhas no I.P. N° 322-148/2019, da Delegacia do 34° Distrito
Policial, Felipe Mateus da Silva Oliveira, Adenilson Pereira Luz, Pedro Henrique Monteiro Neto e Weslley Lucas da Silva Campelo, todos amigos de João
Victor Reinaldo de Sousa, não constam como infratores em nenhum procedimento policial. Johnny Reinaldo de Sousa, imão de João Victor e Raiane Alves
da Paz, namorada de João Victor, testemunhas compromissadas no supracitado Inquérito Policial também não possuem procedimentos policiais em seu
desfavor […] Destarte, não foram encontrados indícios ou dados que vinculem João Victor Reinaldo de Sousa, algum de seus familiares ou amigos a facções
criminosas. Também não forma encontrados dados que possam alicerçar qualquer tipo de prática ilícita com habitualidade por parte destas pessoas”; CONSI-
DERANDO que, após as diligências complementares citadas, oportunizou-se ao aconselhado novo exercício da autodefesa, que foi gravada conforme ata de
fl. 353, estando o vídeo respectivo na mídia de fl. 375. No novo interrogatório, o CB PM Jairo Alves Lobo focou que no período em que se deram os fatos
estavam havendo queimas de ônibus, referindo-se a um período de ataques por organizações criminosas. Disse que era uma época de muita pressão. Relatando
mais uma vez o caso, declarou, in verbis: “Eu passei, me preocupei. Se eu fosse outra pessoa, teria passado, não tinha voltado não, me preocupei com outras
pessoas que vinham; efetuei um disparo, não botei pra pegar, coloquei como se fosse pra cima, botei meu corpo pra fora [do veículo], gritei: ‘saiam daqui,
não vão roubar aqui não, vão pra outro lugar!’; correram, não ficou ninguém; Fui embora. Errei, não me apresentei, minha mulher muito nervosa na hora
chorando […] Eu intervi pensando em salvar a vida de outras pessoas […]” Em seguida o interrogado disse que errou em não ter se apresentado, mas afirmou
não saber se faria isso de novo “porque eu fiz isso aí, depois descobriram onde eu morava, foram me matar”, referindo-se a uma tentativa de homicídio que
sofreu no dia 15 de abril de 2020, conforme IP nº 371-4/2020 (fls. 257/311). Afirmou que João Victor seria membro de facção e praticava assaltos. Em
seguida foi perguntado ao acusado com base em que estaria fazendo esta afirmação, se levando em conta o testemunho de Cícero Janiel Santos da Silva ou
em outra prova, no que respondeu que baseado no testemunho de Cícero, mas disse conhecer outras pessoas que sabiam dessa informação, mas preferem
não se envolver. Disse estar convicto de que eles estavam tentando fazer assalto; CONSIDERANDO que se depreende do novo interrogatório que o acon-
selhado modificou a informação referente a quantidade de tiros que efetuou, afirmando nesta última oportunidade de autodefesa que fez apenas 01 (um)
disparo; CONSIDERANDO que, encerrada a atividade instrutória complementar, o representante legal ofertou Razões Complementares de defesa às fls.
356/372. Argumentou que a acusação não merece prosperar, pois o processado teria agido em estrito cumprimento de dever legal e numa situação de auto-
defesa. Em seguida descreveu a dinâmica dos fatos baseado somente na versão do acusado para sustentar que se tratou de uma tentativa de roubo. A defesa
alegou ainda que tomou conhecimento que a vítima que foi a óbito “era conhecido por realizar assaltos, pertencente a uma organização criminosa” (mais
uma vez se abre um parêntese para registrar a ausência de valor probatório desta afirmação, pelos motivos já expostos). Na sequência, arguiu: “considerando
a situação de balbúrdia e de insegurança pública em que o réu se deparou, ele, na condição de Policial Militar, viu-se na obrigação de realizar algo que
estivesse ao seu alcance para evitar que aquela situação continuasse, tendo em vista possuir o dever legal de agente de segurança pública ainda que fora do
horário de serviço.” A defesa ainda alegou que o processado “não desferiu os disparos pensando em si próprio, mas sim pensando nos demais veículos e
pessoas que estavam trafegando em tal localidade […] Assim, agindo conforme seu dever legal, sob pena de ser responsabilizado por omissão, o Réu, utili-
zando o único instrumento que, no momento, estava em seu alcance, qual seja, a arma da corporação que estava em seu porte, realizou disparos com o fito
apenas de dispersar as pessoas, jamais buscando atirar diretamente em alguma delas.” A defesa utilizou ainda a informação de que o aconselhado sofreu uma
tentativa de homicídio e alegou que há uma “suspeita de que o crime tenha sido uma vingança orquestrada por conhecidos da vítima fatal”. Arguiu que uma
das testemunhas ouvidas é acusado por crime de roubo. Valeu-se também das afirmações da testemunha Cícero Janiel Santos da Silva, que narrou já ter se
relacionado com a ex-namorada da vítima, de nome Raiane, que lhe disse que João Victor era conhecido pela prática de crimes. Na continuidade da peça,
explorou os elementos de informação do inquérito policial que apurou a tentativa de homicídio do aconselhado. Todavia, nada do que alegou comprova que
os fatos tenham ligação, é dizer, situa-se apenas no campo hipotético a afirmação da defesa de que a tentativa de homicídio perpetrada contra o CB PM Jairo
Alves Lobo, ocorrida no dia 15 de abril de 2020, esteja relacionada ao homicídio de João Victor Reinaldo de Sousa, que data de 27 de fevereiro de 2019. No
tópico do direito, mais uma vez o defensor alegou que o processado agiu em estrito cumprimento de dever legal e legítima defesa, enquadrando-se sua conduta
como causa excludente de aplicação de sanção disciplinar prevista no Art. 34, incs. II e III, da Lei nº 13.407/03. Por fim, requereu a absolvição do aconselhado
Jairo Alves Lobo; CONSIDERANDO que, empós a produção de novas provas, a trinca processante elaborou Relatório Final Complementar (fls. 376/378),
no qual apresentaram a seguinte conclusão, in verbis: “Diante da instrução processual, entendemos que as novas diligências não trazem nenhum fato concreto
novo que sirva de substrato para alterar a decisão original da comissão quanto à culpabilidade do CB PM 21.578 JAIRO ALVES LOBO, MF: 151.799-1-0,
razão pela qual ratificamos a deliberação já realizada no sentido de que o aconselhado é culpado das imputações e está incapacitado para permanecer no
serviço ativo”; CONSIDERANDO que, diante de todo o extenso resumo da instrução, bem como da detida análise e fundamentação feita no Relatório Final
(fls. 187/203) e Complementar (fls. 376/378), que se encontram consonantes com as provas dos autos, outra conclusão não se aplica senão acolher-se a
sugestão de mérito da Trinca Processante, com todos os seus fundamentos, que passam a integrar a motivação da presente decisão, na forma do que preconiza
o Art. 28-A, §4º, da Lei Complementar nº 98/2011, ou seja, restou a hipótese acusatória delineada na portaria inaugural plenamente demonstrada. Sendo a
prova robusta e suficiente para confirmar os fatos que pesam em desfavor do aconselhado, doravante será feito o enquadramento jurídico do caso ao regime
disciplinar aplicável e, de modo concomitante, enfrentar-se-á todos os argumentos deduzidos neste processo, porquanto a fundamentação para consubstanciar
o mérito e deslinde deste feito encontra-se imbricada com a superação dos argumentos da defesa; CONSIDERANDO que, quanto aos aspectos jurídicos,
inicialmente, cabe destacar que o Poder Disciplinar objetiva averiguar a regularidade da conduta dos militares diante dos valores, deveres e disciplina de sua
Corporação, à luz do regramento legal ao qual estão adstritos (Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado
do Ceará – Lei n 13.407/03); CONSIDERANDO que, no caso sub oculi, não obstante o presente Conselho de Disciplina não se preste a apurar crimes
propriamente ditos, a hipótese acusatória deduzida na portaria descreve, precipuamente, uma transgressão disciplinar que se amolda ao tipo penal de homi-
cídio, previsto no Art. 121, do Código Penal Brasileiro. Observe-se que, por força do disposto no Art. 12, §1º, I, da Lei nº 13.407/03, são transgressões
disciplinares os fatos compreendidos como crime, como se observa pela literalidade do dispositivo: “Art. 12. […] §1º. […] I - todas as ações ou omissões
contrárias à disciplina militar, especificadas no artigo seguinte, inclusive os crimes previstos nos Códigos Penal ou Penal Militar;” CONSIDERANDO que,
partindo-se da premissa de que o fato imputado se assemelha ao aludido delito (Art. 121 do CPB), o caso será analisado, mutatis mutandis, à luz do enten-
dimento que se daria na seara Penal, consoante a teoria analítica do crime, posto comungarem da mesma ratio juris; CONSIDERANDO que, preambularmente,
temos que no caso sob julgamento a materialidade é um fato indiscutível diante da morte de João Victor Reinaldo, conforme atestada no laudo cadavérico
de fl. 33; CONSIDERANDO que, outra premissa que pode ser estabelecida com certeza é que a causa da morte de João Victor deveu-se a um disparo de
projétil da arma portada pelo CB PM Jairo Alves Lobo. Lastreando essa conclusão está, além do relato do próprio acusado, que confirmou em duas oportu-
nidades que deflagrou sua arma, o Laudo de Comparação Balística nº 193105-2/2019 (fls. 37/43-V), no qual se confirmou que os 03 (três) estojos recolhidos
no local do crime foram percutidos pela Pistola SIG Sauer portada pelo encimado militar; CONSIDERANDO que outros dois aspectos fáticos incontroversos
servem de premissa inarredável da análise jurídica no presente caso. O primeiro é que ao menos três disparos foram efetuados durante o episódio sob apuração,
dado que três estojos (comprovadamente oriundos da arma do processado – fls. 37/43-V) foram recolhidos, conforme Relatório de Recognição Visuográfica
de Local de Crime (fls. 26/27). Assim, caem por terra as versões de que o aconselhado tenha dado apenas um disparo. A propósito, nem mesmo o CB PM
Jairo teve coesão em relação ao número de tiros deflagrados, pois inicialmente disse ter dado dois disparos, mas no interrogatório complementar afirmou
que atirou só uma vez. O segundo ponto incontroverso é que ao menos um desses disparos, no caso o que atingiu fatalmente a vítima, percorreu trajeto
horizontal, pois no laudo cadavérico da vítima foi descrito que “O projétil que penetrou o corpo em E1 fez trajeto de trás para frente, sendo letal ao atingir
a medula cervical”, tendo a entrada sido na região da parte de trás do pescoço e a saída na região oral (fl. 33), o que denota que o projétil percorreu trajetória
horizontal. Essa segunda conclusão é crucial para a análise da responsabilização do aconselhado, uma vez que demonstra que agiu com completa indiferença
em relação à vida das pessoas que estavam na rua naquele momento; CONSIDERANDO que, ante a esses pressupostos, isto é, que o resultado transgressivo
possui nexo de causalidade incontestável com a conduta do acusado, não se duvida que o fato é típico, isto é, o processado matou João Victor. Portanto, o
cerne da presente decisão consiste em apurar a ilicitude ou licitude dessa morte; CONSIDERANDO ser preciso fixar que, por se tratar de uma transgressão
que se equipara a um crime (homicídio), estamos diante de um fato regido pela indiciariedade da ilicitude (teoria da ratio cognoscendi), segundo a qual,
havendo fato típico, presume-se, de modo relativo (juris tantum), sua antijuridicidade, que só é afastada quando demonstrada uma causa de justificação ou
mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência. A adoção de tal teoria tem repercussão no ônus da prova, conforme explica elucidativamente Rogério
Sanches: “De acordo com a doutrina majoritária, o Brasil seguiu a teoria da indiciariedade ou da ratio cognoscendi […] Em suma, provada a tipicidade, há
indícios de ilicitude (ou antijuridicidade). Essa suspeita provoca uma consequência importante: o ônus da prova sobre a existência da causa de exclusão da
ilicitude é da defesa (de quem alega). Ocorre que, com a reforma promovida pela Lei 11.690/08 no Código de Processo Penal, o juiz deve absolver o acusado
quando “existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu depena, ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência.” Parece-nos que,
agora, está absolutamente claro que a dúvida razoável sobre a existência ou não da excludente de ilicitude favorece o réu, devendo o magistrado absolvê-lo
com fundamento no artigo 386, VI, parte final, do Código de Processo Penal. Em resumo: havendo dúvida, deve o réu ser condenado (não se aplicando o in
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