DOE 14/06/2023 - Diário Oficial do Estado do Ceará
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DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO | SÉRIE 3 | ANO XV Nº110 | FORTALEZA, 14 DE JUNHO DE 2023
dubio pro reo); no caso de dúvida razoável, o réu merece ser absolvido.” (Manual de direito penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 12. ed. rev., atual, e ampl.
- Salvador: JusPODIVM, 2020. p. 323). Destaca-se tal lição doutrinaria para já deixar assentado, desde logo, que não é qualquer dúvida lançada nos autos
acerca de uma excludente de ilicitude que tem a aptidão de gerar a absolvição, mas somente a dúvida razoável, entendida como aquela que afasta o juízo de
certeza necessário para ensejar a punição; CONSIDERANDO que o aconselhado, assistido por seus defensores, alegou duas excludentes de ilicitude: legítima
defesa e estrito cumprimento de dever legal. Ocorre que, como se passa a demonstrar, tais causas justificantes não podem ser acolhidas por ausência de provas
que as confirmem ou, ao menos, estabeleçam uma dúvida razoável de suas existências; CONSIDERANDO que a legítima defesa, justificante que repousa
na noção de ser autorizado se repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, usando moderadamente dos meios necessários, não pode ser extraída destes
fólios a partir de uma interpretação conjugada da totalidade das provas. Nem mesmo a existência da injusta agressão, pressuposto central da legítima defesa,
restou demonstrada. Confirmando a ausência da injusta agressão, além dos inúmeros depoimentos colhidos das testemunhas que estavam presentes no local,
somente o acusado disse que ouviu o anúncio de um assalto. Nem mesmo sua esposa relatou que alguém do grupo de pessoas anunciou um roubo. Em que
pese o aconselhado e sua companheira tenham afirmado que aquelas pessoas arremessaram objeto no carro, eles disseram que não viram aquelas pessoas
armadas. Importa ainda notar que quando ouvido em sede de inquérito policial, ou seja, quando temporalmente mais próximo dos fatos, o CB PM Jairo não
falou que alguém na rua disse: “perdeu, perdeu, é um assalto!”, o que só mencionou na fase processual. Assim, vide precedentes judiciais nos quais, não
restando demonstrado a existência de uma injusta agressão ou mesmo a moderação no uso dos meios necessários, os tribunais mantiveram as condenações:
“LEGÍTIMA DEFESA NÃO CONFIGURADA. SENTENÇA MANTIDA. 1. Não há como acolher a tese de legítima defesa, se o acusado não demonstrou
minimamente os requisitos da excludente, especialmente a injusta agressão. 2. Recurso conhecido e desprovido.” (TJ-DF 20208070007 1426667, Relator:
ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 26/05/2022, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: 09/06/2022) “Inviável o reconhecimento da
excludente de ilicitude da legítima defesa, pois para a sua configuração mostra-se imprescindível o uso moderado dos meios necessários para repelir injusta
agressão, o que não restou verificado no caso.” Acórdão 1313448, 00010723620178070008, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Segunda Turma
Criminal, data de julgamento: 28/1/2021, publicado no PJe: 10/2/2021; CONSIDERANDO que também não há como afirmar que houve uso moderado dos
meios necessários, ante a patente desproporção entre o ataque do aconselhado com uso de arma de fogo contra um grupo de jovens desarmados. Neste sentido:
“para que se possa falar em meio necessário é preciso que haja proporcionalidade entre o bem que se quer proteger e a repulsa contra o agressor (...) Os
princípios reitores, destinados à aferição da necessidade dos meios empregados pelo agente, são o da proporcionalidade e o da razoabilidade. A reação deve
ser proporcional ao ataque, bem como deve ser razoável. Caso contrário, devemos descartar a necessidade do meio utilizado e, como consequência lógica,
afastar a causa de exclusão da ilicitude” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Vol. 01 – Impetus, 19ª Ed., Niterói/RJ - 2017, págs. 484/485); CONSI-
DERANDO outros trechos dos relatos do próprio aconselhado que são esclarecedores para confirmar que não havia uma injusta agressão atual ou iminente,
que despertasse a necessidade de ser repelida por meio de disparos de arma de fogo. No IP, ele disse que “atirou contra os indivíduos por ter certeza que eles
estavam por ali parando os carros para assaltarem” (fls. 12). Na fase processual, “eu fiz o retorno mais preocupado com as pessoas que estavam atrás e iriam
vir”, “efetuei, não com a intenção de acertar neles, mas deles saírem do meio da via, deles saírem daquele lugar.” (gravação de fls. 169), e “me preocupei
com outras pessoas que vinham; efetuei um disparo, não botei pra pegar, coloquei como se fosse pra cima, botei meu corpo pra fora [do veículo], gritei:
‘saiam daqui, não vão roubar aqui não, vão pra outro lugar!’; correram, não ficou ninguém; Fui embora […] Eu intervi pensando em salvar a vida de outras
pessoas” (gravação de fls. 375). A partir dessas transcrições, é notório que sua preocupação era com uma agressão futura que o grupo pudesse vir a praticar
com pessoas que passariam por aquele local, ou seja, uma mera suposição. Ora, se a agressão é futura, e, portanto, hipotética e incerta, não se pode falar em
legítima defesa; CONSIDERANDO ainda a desnecessidade e imoderação de uma atuação mediante pelo menos três disparos de arma de fogo contra um
grupo de pessoas desarmadas. Nesse ínterim, não se olvida que a defesa só pode ser considerada legítima se for estritamente necessária e moderada. Na lição
de Zaffaroni e Pierangeli: “legítima defesa não pode contrariar o objetivo geral da ordem jurídica - a viabilização da coexistência - de maneira que, quando
existe uma desproporção muito grande entre o mal que evita quem se defende e o que lhe quer causar quem o agride, porque o primeiro é ínfimo comparado
com o segundo, a defesa deixa de ser legítima […] Essa característica da legítima defesa encontra-se consagrada em nossa lei através do advérbio “modera-
damente” […] Para ser legítima, antes de mais nada a defesa deve ser necessária, isto é, que o sujeito não estivesse obrigado a realizar outra conduta menos
lesiva ou inócua ao invés da conduta típica.” (ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V. 1, 9ª ed.
São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p. 499 e 502); CONSIDERANDO ser assaz pertinente pontuar que a defesa tentou levar a crer que o aconselhado
agiu, enquanto agente de segurança pública, em uma espécie de legítima defesa da ordem pública, mas essa modalidade de autodefesa não é aceita no orde-
namento jurídico, pois a legítima defesa “Deve ser exercida no contexto individual, não sendo cabível invocá-la para a defesa de interesses coletivos, como
a ordem pública ou o ordenamento jurídico.” (Nucci, Guilherme de Souza Manual de direito penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense,
2014); CONSIDERANDO que, mais uma vez trazendo à baila que o processado apresentou a narrativa de que agiu na proteção da sociedade, preocupado
com pessoas que ainda iriam passar no local (mera suposição), é propícia a lição de Zaffaroni, que se mostra pertinente ao caso em tela, por tratar da atuação
de agentes estatais na proteção social, na qual aduz: “Tanto em relação à legítima defesa, como ao de cumprimento de dever legal, uma pergunta se impõe:
é admissível a morte de uma pessoa para evitar a sua evasão, porque não acata a sua detenção, e, particularmente, pode-se usar armas para matá-la em tais
casos? Considerando-se ser a moderação um dos requisitos da legítima defesa, não nos parece, de modo algum, admissível o homicídio como meio legítimo
para que um Estado de Direito defenda a administração de sua justiça.” (Ob. Cit. p. 504); CONSIDERANDO que, para exaurir a discussão do caso, urge
ainda analisar que, por mais que na legítima defesa não exista o dever de evitação do risco, que só é requisito do estado de necessidade, tal conclusão não
permite ações claramente desproporcionais como a levada a efeito pelo aconselhado no dia 27/02/2019, que, depois de já ter se afastado do grupo de pessoas,
pegou o retorno para investir contra vidas alheias. Nucci corrobora com esse entendimento: “Não se exige, no contexto da legítima defesa, tal como se faz
no estado de necessidade, a fuga do agredido, já que a agressão é injusta. Pode ele enfrentar a investida, usando, para isso, os meios que possuir ao seu alcance,
sejam eles quais forem. A exigência de fuga, como lembra BETTIOL, degrada a personalidade moral, mas isso não significa que, de propósito, o sujeito
procure passar próximo do local onde está o agressor, que já o ameaçou, para gerar uma situação de legítima defesa (Diritto penale – Parte generale, p. 260).
[...] É curial, no entanto, mencionar a correta ressalva feita por BENTO DE FARIA no sentido de que, “em casos excepcionais, a fuga se impõe sem acarretar
vergonha, mas, ao contrário, elevando os sentimentos de quem a pratica. Assim, o filho que, embora possa reagir, prefere fugir à agressão injusta de seu pai,
para não matá-lo ou molestá-lo” (Código Penal brasileiro comentado, v. 2, p. 205). É o que se chama de commodus discessus, ou seja, o cômodo afastamento
do local, evitando-se a situação de perigo ou agressão, em nome da prudência, sem qualquer ofensa à imagem do ofendido.” (Ob. Cit. p. 215); CONSIDE-
RANDO que resta plenamente demonstrada a razão pela qual não se pode acolher a tese de que o aconselhado tenha agido em legítima defesa, pois nenhum
dos requisitos previstos no Art. 25 do Código Penal se fez presente na ação. Aliás, como se tratam de requisitos cumulativos, bastaria que um deles estivesse
ausente para se afastar a excludente; CONSIDERANDO que, em relação a alegação de que agiu em estrito cumprimento de dever legal, é ainda mais evidente
que tal causa de justificação deve ser igualmente rechaçada, porquanto, no âmbito da Lei Federal nº 13.060/2014, estabeleceu-se um dever legal proibitivo
aos agentes de segurança pública de atirar contra pessoas desarmadas ou que não apresentem riscos de morte, especificamente em seu parágrafo único do
Art. 2º, I, in verbis: “Art. 2º […] Parágrafo único. Não é legítimo o uso de arma de fogo: I - contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente
risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros”. Destarte, é notório que o CB PM Jairo Alves Lobo, na verdade, descum-
priu o dever legal que tinha naquele cenário enquanto policial militar, pois agiu contrariamente ao disposto na Lei Federal nº 13.060/2014, e inobservou que
o uso de arma de fogo letal deve sempre se pautar na legalidade, necessidade e proporcionalidade; CONSIDERANDO que mesmo que a legítima defesa
putativa, também levantada como tese pela defesa, não encontra guarida nas provas dos autos, uma vez que tal instituto só incide quando decorrer de erro
plenamente justificado pelas circunstâncias. Todavia, no caso dos autos, as circunstâncias que resultam da reconstrução processual dos fatos não evidenciam,
com o mínimo de razoabilidade, que o aconselhado imaginasse justificadamente estar diante de uma injusta agressão. Repita-se, até as versões do próprio
acusado carecem de coesão interna, pois, na primeira versão apresentada pelos fatos não disse que houve anúncio de assalto e ainda falou que agiu em defesa
de pessoas que poderiam vir a passar no local. Precedente: “Para o reconhecimento da legítima defesa putativa, seria necessário prova induvidosa, a cargo
da defesa, nos termos dispostos no art. 156 do CPP, das circunstâncias que antecederam os fatos, de modo a justificar a suposição do réu de estar face uma
agressão atual e injusta” (TJMG, AC 0043476-71.2002.8.13.0393, Rel.Des. Paulo Cezar Dias, DJe 21/8/2012); CONSIDERANDO que, se tivesse agido
como um agente policial, em nome do Estado, e buscando garantir a segurança pública, como alegou a defesa, o CB Jairo teria adotado outra postura após
o fato e não se evadido do local sem comunicar sua ação, que notoriamente se deu ao arrepio da legalidade. Em verdade, o processado excedeu manifestamente
limites impostos a sua profissão, praticando transgressão equiparada ao delito de homicídio, que, por óbvio, em nada contribuiu com a segurança da sociedade.
Sua conduta de se evadir e não comunicar o fato denota completo desprezo pela vida que ceifou e pelas demais pessoas que pôs em risco; CONSIDERANDO
que, enfrentando ainda outros argumentos deduzidos pela defesa, temos que, em relação à afirmação de que a vítima João Victor teria costume de praticar
roubos, tal alegação, como já assentado, carece de qualquer elemento de sustentação e, por via de consequência, não possui valor probatório algum, consoante
o brocardo jurídico allegatio et non probatio quasi non allegatio (Alegar sem provar é o mesmo que nada dizer). Igualmente, a menção de que o fato objeto
deste procedimento estaria relacionado a uma tentativa de homicídio sofrida por ele dia 15 de abril de 2020 também não possuiu lastro probatório que a
sustente, é dizer, não há prova de uma ligação entre os dois eventos. A mesma sorte incide quanto ao argumento de que naquela época, início de 2019, estavam
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