DOU 21/10/2024 - Diário Oficial da União - Brasil

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Nº 204, segunda-feira, 21 de outubro de 2024
ISSN 1677-7042
Seção 1
Já as Centrais de Abastecimento (Ceasas), que na sua maioria estão sob a gestão dos governos estaduais, representam um importante canal de comercialização de hortigranjeiros,
incluindo a produção oriunda da Agricultura Familiar. É o caso também das feiras livres, dos Mercados Municipais (públicos e privados) - especialmente os de pequenos municípios - e dos
mercados ambulantes, que podem ser considerados estratégicos para o abastecimento alimentar, além de serem espaços de sociabilidade e troca de saberes com o componente da cultura
fortemente atrelado às suas ações. Porém, estudo realizado por Cunha e Belik (2015), em diversas cidades brasileiras, constatou que tanto as feiras, como os mercados de ambulantes
enfrentam dificuldades para seguirem operando. Consistem, desse modo, em espaços a serem fortalecidos pela PNAAB.
O Decreto nº 11.936/2024, que dispõe sobre a composição da nova Cesta Básica de Alimentos no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e
da Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB) evidencia que a cesta básica consiste em "um conjunto de alimentos que busca garantir o direito humano à alimentação adequada
e saudável, à saúde e ao bem-estar da população brasileira". Suas diretrizes têm como objetivo fomentar sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e se baseiam nas recomendações
e princípios dos Guias Alimentares, na proteção da alimentação adequada e saudável, da saúde das pessoas e do meio ambiente; no respeito à cultura e às tradições regionais; e no
reconhecimento da diversificação e da diversidade, observadas as condições da região, do território, do bioma e da sazonalidade dos alimentos. Estes atos normativos representam toda a
importância atribuída ao tema do abastecimento alimentar no Brasil.
A complexidade em torno do tema do abastecimento alimentar deve ser considerada em sua amplitude, através do fortalecimento de políticas públicas e ações que estimulem
não apenas a produção de alimentos saudáveis (orgânicos e agroecológicos), mas que também repercutam na promoção de hábitos alimentares saudáveis e tragam a dimensão de uma
alimentação culturalmente referenciada. Políticas importantes para o abastecimento alimentar, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE) e os Quintais Produtivos, no âmbito federal, e outros dispositivos semelhantes nos estados e municípios, devem considerar, desde a produção até o consumo dos alimentos,
o objetivo maior de alcançar um sistema alimentar saudável, sustentável e inclusivo.
O Plano Alimento no Prato como estratégia para diminuir as desigualdades com equidade e saúde (das pessoas e do ambiente)
As diretrizes "respeito à diversidade cultural, à equidade de gênero, à justiça socioambiental e aos direitos humanos e combate ao racismo estrutural", "valorização das práticas
alimentares locais e das culturas alimentares brasileiras" e " priorização do atendimento à população em situação de insegurança alimentar e nutricional e em vulnerabilidade social"
expressam a expectativa de que o Plano Alimento no Prato possa, em alguma medida, dirimir nos territórios, as desigualdades presentes e recorrentes, trazendo o princípio da
equidade.
Segundo documento de subsídio ao Plano elaborado pela FAO (2024), no passado foram estabelecidas algumas ações visando a comercialização de alimentos e o abastecimento
em situações críticas e de elevação de preços. Contudo, é fundamental considerar os objetivos do Plano Alimento no Prato como sendo capazes de impulsionar outras ações estruturantes
que viabilizem, concretamente, mudanças nos territórios e nas vidas das pessoas. Diferentes problemas perpassam as dinâmicas de abastecimento alimentar no país. Ainda que esses possam
afetar toda a sociedade, determinados grupos sociais estão muito mais vulneráveis e vivenciam as problemáticas alimentares de maneira muito mais intensa.
As mulheres, a população negra, os povos indígenas, quilombolas e PCTs sempre enfrentaram obstáculos adicionais, que são provenientes de discriminações históricas e
estruturais. Estes grupos muitas vezes têm pouco (ou nenhum acesso) à terra, território e água, além de outros bens e serviços humanos básicos que impactam, sobremaneira, sua
capacidade de produzir, processar, acessar e consumir alimentos de forma sustentável e saudável.
Dados recentes, mais especificamente do último trimestre de 2023, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD - Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) revelam a situação de segurança alimentar e de insegurança alimentar leve, moderada ou grave no país. As regiões Norte e Nordeste são as mais vulneráveis, sendo 16%
e 14% respectivamente, de acordo com os parâmetros da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e Nutricional (EBIA), em comparação com as demais regiões do país, sendo: Sul (4,7%),
Sudeste (6,7%) e Centro- Oeste (7,9%).
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede-Penssan) em seu II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (II VIGISAN, 2021/22)
evidenciou que se comparado ao meio urbano, o rural apresenta um percentual de 64% dos domicílios que estão em situação de insegurança alimentar moderada e grave. De acordo com
o relatório, enquanto 53,6% dos domicílios com responsáveis homens estavam em situação de insegurança alimentar, tal percentual se eleva para 63% dos domicílios com responsáveis
mulheres. Embora mais sujeitas à insegurança alimentar (sobretudo as mães solos), as mulheres têm um papel fundamental na segurança alimentar e nutricional e na produção e oferta
de alimentação adequada e saudável. Em relação à categoria raça/cor 6 de cada 10 domicílios cujos responsáveis se identificavam como pretos ou pardos viviam algum grau de insegurança
alimentar e nutricional.
a promover o acesso via regulação pública dos mercados, modernização dos equipamentos, gestão e financiamento de programas de abastecimento alimentar, entre outras iniciativas.
Porém, mesmo sendo uma reivindicação de parte do governo federal e do Consea - principal instância de participação e controle social que pautava este tema - não se conseguiu dar
encaminhamento, sobretudo, pela falta de um lócus institucional capaz de incluir o tema na agenda governamental à época.
De 2006 até 2016, segundo governo Lula e nos mandatos seguintes da presidenta Dilma Rousseff, outras iniciativas foram incorporadas ao rol das ações voltadas à SAN. Entre
elas estão o fortalecimento da alimentação escolar, mediante a criação da Lei nº 11.947/2009, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto
na Escola aos alunos da educação básica; a criação e fortalecimento de bancos de alimentos; a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira; a criação da Política Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), com seus respectivos planos; e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) com seus respectivos Planos. Em 2012,
novamente, o Consea encaminhou à Presidência da República uma Exposição de Motivos para a criação de uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB) elaborada pela
Caisan, na forma de uma minuta de Projeto de Lei. Contudo, mais uma vez, tal iniciativa não avançou.
Em seguida, foi lançado o II Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (II Plansan), 2016-2019, elaborado pela Caisan, com base nas proposições aprovadas pela
5a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O documento faz uma autocrítica ao I Plansan 2012-2015, com relação ao grande número de metas e objetivos não
cumpridos entre estes: o "DESAFIO 6.4 - Promover o abastecimento e o acesso regular e permanente da população brasileira à alimentação adequada e saudável" que propunha diretrizes
na área de "compras públicas e estoques reguladores, modernização dos sistemas de abastecimento, economia solidária, legislação sanitária, redução de perdas e desperdício de alimentos
e agricultura urbana" - que tratava essencialmente do abastecimento alimentar no país (FAO, 2014).
A mudança abrupta de governo sob ruptura institucional em 2016, bem como as sucessivas crises políticas e econômicas repercutiram nas ações do Estado, resultando no
desmonte de diversas políticas públicas, incluindo as de segurança alimentar e nutricional, as políticas de promoção da Agricultura Familiar e da agroecologia. O Consea, o Condraf e a
Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) foram extintos, provocando um vazio institucional, e supressão dessas instâncias de participação e monitoramento por
parte da sociedade civil, impedindo, em boa medida, o avanço de políticas públicas voltadas ao abastecimento alimentar.
As novas diretrizes governamentais implementadas a partir do impeachment da Presidenta Dilma, entre outros fatores, provocaram o aumento do desemprego, a elevação dos
preços dos alimentos e o crescimento, ainda mais acelerado, da produção de commodities agrícolas. A forma como o governo federal lidou com a pandemia da Covid-19, contribuiu para
ampliar as desigualdades e a fome no país, repercutindo para a elevação dos indicadores de insegurança alimentar e nutricional, fazendo o país retornar ao "Mapa da Fome", com mais
de 33 milhões de pessoas passando fome no país (Rede PENSSAN, 2022).
Em 2023, com o início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram retomadas diversas políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), de promoção
da Agricultura Familiar e da agroecologia, sendo recriados os espaços de participação socialClique aqui para inserir texto. mencionados anteriormente (Consea, Condraf e Cnapo). Nesse
contexto, destaca-se também a recriação do MDA, agora nomeado Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, com a criação da Secretaria de Abastecimento,
Cooperativismo e Soberania Alimentar (SEAB). Além disso, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a CeasaMinas e Ceagesp passaram a ser supervisionadas pelo MDA com o
objetivo de reforçar sua atuação no abastecimento alimentar do país e na construção de sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e inclusivos.
Nesse novo cenário e com as mudanças em curso, as discussões sobre a necessidade de criar uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB) foram retomadas.
Destaca-se novamente a atuação do Consea, por meio da Resolução no 15, de 10 de outubro de 2023, que recomendou ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar,
à Conab e à CAISAN a formulação e implementação de uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar. Esta articulação culminou na publicação Decreto nº 11.820 de 12 de dezembro
de 2023, que cria a Política Nacional de Abastecimento Alimentar lançado durante a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Brasília ainda em
2023.
Produção, distribuição e disponibilidade de alimentos para combater à fome e promover saúde (alimentação adequada e saudável) com Soberania Alimentar
As primeiras diretrizes da PNAAB são "I - promover um sistema integrado de abastecimento alimentar que englobe produção, beneficiamento, armazenagem, transporte,
distribuição, comercialização e consumo, com vistas a promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional; II - garantia do direito humano à alimentação, com acesso regular e
permanente da população brasileira a alimentos adequados e saudáveis em quantidade suficiente e, III - incentivo a práticas alimentares promotoras da saúde, da agroecologia e da
sociobiodiversidade" (Decreto nº 11.820/2023). Essas Diretrizes exigem do governo federal a implementação de políticas públicas que sejam promotoras de sistemas alimentares
sustentáveis e saudáveis e que priorizem a produção diversificada de alimentos pela Agricultura Familiar, visando promover e fortalecer os circuitos curtos de produção-consumo e ainda
combater à fome com alimentos capazes de promover à saúde das pessoas e do ambiente com justiça socioambiental.
Nos últimos 50 anos o Brasil passou por uma grande transformação na paisagem agrária, além do aumento da concentração fundiária e do desmatamento, as políticas
governamentais contribuíram para o avanço da produção de commodities agrícolas, sobretudo a partir dos anos 2000, em detrimento da produção de alimentos básicos. Segundo dados
da Conab (2024), a soja e milho expandiram 230% (32,0 milhões de hectares) e 160% (8 milhões de hectares), respectivamente. Por sua vez, o arroz perdeu a metade da área de produção
nacional (1,6 milhão de hectares) e o feijão reduziu quase 30% da área total (1,0 milhão de hectares).
Porto (2021) afirma que a concentração da produção desses alimentos em determinadas regiões e estados repercute gravemente no abastecimento alimentar. Constata que,
no caso do arroz, o Rio Grande do Sul passou de 1990 a 2015 a responder por mais de 70% da produção nacional. Neste diapasão, o feijão, juntamente com a mandioca, teve redução
da área plantada, e perda de relevância de produção advinda da Agricultura Familiar. Esses sistemas de economia familiar foram substituídos por grandes lavouras vinculadas ao
agronegócio, incluindo, no feijão, o uso de sistemas irrigados.
No que diz respeito à produção agropecuária, a Agricultura Familiar detém apenas 23% da área dos estabelecimentos rurais no Brasil, em que pese esse confinamento da área,
assegura a diversidade da produção de alimentos, sendo responsável pela conservação da agrobiodiversidade, pelos sistemas tradicionais de produção e pela promoção da cultura
alimentar regional. Ainda, responde por 60% do Valor Bruto da Produção (VBP) de hortícolas (Brasil, IBGE, 2017). No caso das lavouras temporárias em geral, é responsável por 48% da
área colhida de feijão, 17% de milho e 16% de arroz, respondendo por 25%, 17% e 12%, respectivamente, do VBP (idem).
Em relação à produção de frutas de lavoura permanente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) evidencia que: banana, laranja, maracujá, limão, tangerina, manga,
pêssego, maçã, goiaba e mamão, possuem uma forte relação produtiva com o segmento da Agricultura Familiar. Alguns alimentos possuem, dentro do sistema alimentar, um fluxo de
produção-distribuição-comercialização bem constituído, como é o caso do açaí, cupuaçu e guaraná na Amazônia e do coco-da-baía e caju no Nordeste.
No caso das hortaliças, a região Sudeste concentra a maior parte da produção e essa é proveniente de forma majoritária da Agricultura Familiar. É estratégico para o
abastecimento alimentar criar estratégias para diversificar todo o ciclo, desde a produção ao consumo em diferentes regiões e territórios. Segundo o Censo Agropecuário (IBGE, 2017)
e a título de exemplificação de alguns alimentos, uma proporção de 64% da alface, 61% do repolho, 68% da abobrinha e 67% da couve são provenientes do Sudeste. Em que pese esta
produção ter sua origem no segmento da Agricultura Familiar, este cenário segue com desafios importantes em termos de concentração de mercado nos quais as relações comerciais
são pouco inclusivas com os assentamentos da reforma agrária, os povos indígenas, os quilombolas e os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), conforme definido nos Decretos nº
6.040/2007 e nº 8.750/2016 (FAO, 2024).
A produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, ou ainda em transição agroecológica, é determinante para avançar em um abastecimento alimentar que considere
sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis e ainda, a promoção e a proteção da saúde (das pessoas e do ambiente). Neste sentido, cabe ao Plano Alimento no Prato prover os
mecanismos que irão potencializar a ampliação da produção- distribuição-comercialização-acesso e consumo desses alimentos. Marques (2022) identificou a presença de cerca de 725 mil
estabelecimentos agropecuários no Brasil, respondendo por aproximadamente 14% dos estabelecimentos totais, 9% da área, 12% do pessoal ocupado e 2% do valor bruto da produção,
o que ainda se configura como muito aquém do que se espera para um país continental e diverso como o Brasil (FAO, 2024).
Outro ponto importante em relação à disponibilidade e comercialização de alimentos é a formação-utilização de estoques públicos para estabilizar os preços dos alimentos.
As recomendações de organismos internacionais estabelecem que para dispor de um patamar seguro, o ideal é ter em torno de três meses do consumo doméstico em estoque em poder
do governo.
De acordo com a Conab, nos últimos dez anos os estoques estratégicos de feijão representaram apenas 0,2% do consumo anual. No caso do arroz e milho, nesse mesmo
período, os estoques físicos e no mercado de opções não ultrapassam 1% e 2% do consumo doméstico, ou seja, algo em torno de 3 e 7 dias de consumo, respectivamente (Conab, 2024;
FAO, 2024).
Apesar do Brasil possuir uma ampla diversidade quanto ao tipo de equipamento de abastecimento, há uma concentração das vendas em poucas redes de supermercados e
atacarejos, segmentos que vêm assumindo cada vez mais relevância no abastecimento alimentar no país. Segundo o ranking ABRAS 2024[1], 1.251 empresas do ramo varejista de
alimentos que responderam à pesquisa sobre faturamento em 2023, juntas somaram mais de R$ 602,7 bilhões em vendas. Destas, apenas 10 empresas faturaram mais da metade (R$
313,9 bilhões) e as 100 maiores faturaram cerca de 85% do total comercializado (R$ 517,4 bilhões). Além do faturamento desse setor ser concentrado, a maior parte desses equipamentos
de comercialização de alimentos não atendem a população com alimentos acessíveis e saudáveis. A venda de alimentos em supermercados é predominante, mas não exclusiva, e 78%
do faturamento do setor está vinculado à venda de diferentes tipos de alimentos sendo que as frutas, legumes e verduras participam, apenas, com 8% nesse faturamento (FAO,
2024).

                            

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